“Semente de mostarda” (Mt 13,31)
Tentarei relacionar este pinguinho de Bíblia a outros saberes inspirados. A pretensão é ressaltar o fio que perpassa: Jesus, totalmente fascinado pelo coração do Pai, O via atuando em cada criatura. Igualmente, mas com a devida gradualidade, São Francisco vê o “meu Senhor” em tudo; o noviço, atingido pela afeição, vê o rosto da amada em tudo. Cl 1,16 diz: tudo foi criado por Ele, nele e para Ele.
Uma anedota chinesa: O mestre ordena ao discípulo que limpe o pátio e o jardim. Ele varreu o pátio e as passarelas. Chamou o mestre para avaliar. O mestre disse: limpa mais.
Ele varreu as folhas caídas na grama, no pé das plantas. Chamou o mestre para avaliar. O mestre: limpa mais.
Ele pegou um balde d’água, pano e limpou cada folha das árvores. Chamou o mestre. O mestre sacudiu os galhos das árvores e as folhas envelhecidas cobriram de novo toda a área. Depois, tascou: LIMPAR É DEIXAR SER.
Um trecho de um poema de Manoel de Barros diz:
Pela rua deserta atravessa um bêbado comprido e oscilante como bambu assobiando…
Ao longo das calçadas algumas famílias ainda conversam. Velhas passam fumo nos dentes, mexericando…Nhanhá está aborrecida com o neto que foi estudar no Rio e voltou ateu.
— Se é pra desaprender, não precisa mais estudar.
Pasta um cavalo solto no fim escuro da rua. O rio calmo, lá embaixo, pisca luzes de lanchas acordadas. Nhanhá choraminga: – Tá perdido, diz que negro é igual a um branco!
Em “O Nome da Rosa”, de Humberto Ecco, romancista italiano, o noviço, em hora noturna, na cozinha do mosteiro, vive uma experiência amorosa com uma jovem que invadira o espaço para roubar. Seria apenas um frango ou um pacote de alimento para seus irmãozinhos famintos. Depois, a mocinha foi descoberta, presa e, certamente, executada conforme a legislação do tempo e lugar. Ambos se encantaram com o vivenciado: o jovem monge, depois, via o rosto dela no olho do boi, nas flores, nas folhas das árvores, na pena dos passarinhos……!
Experiência similar descreve Guimarães Rosa, em “Grande Sertão, Veredas”. Num momento de recordação de intensa afeição por Diadorim, Riobaldo diz: “aquilo empapou tudo…até a folha das árvores… em pensamento abracei Diadorim com as asas de todos os pássaros…”.
Francisco, retornado da guerra Assis/Perúgia, desiludido com a derrota, mas ainda eleito líder dos jovens, caminha com eles, cantarolando, à noite, pelas ruas da cidade. De repente, Francisco se detém e a turminha prossegue. O grupo, já distanciado, volta-se a ele e diz: Você parece apaixonado, Francisco…!?. Essa narrativa está no capítulo 3, da “Legenda dos Três Companheiros”, uma das primeiras biografias do santo.
Posteriormente, ele explica: “Fui tomado por uma tal experiência de doçura que se me cortassem em pedacinhos, não conseguiria sequer me mexer”. O resto da vida de Francisco foi tirar a limpo aquilo. Perguntou-se se não teria sido ilusão? Concluiu que não. Se foi puro acaso ou se é possível a gente buscar aquilo?
Então, Francisco se dá conta que, naquele instante, sentia-se frustrado, perdera a guerra, “pisara na bola”, como se diz. E passou a desconfiar que quem está “pisando na bola”, sem fixações, aberto e livre, está também fazendo aquela experiência. E pensa: pobre é quem mais “pisa na bola” – nem sabe se vai ter comida amanhã…? – Acho que pobre está fazendo aquela experiência continuamente…!? Passa, então, a viver pobre, no meio dos pobres.
Depois, ele vê que o leproso é mais pobre ainda. E vai para o meio deles. Um dia, passando pela igreja de São Damião, o crucifixo lhe fala: Francisco, reconstrói a minha igreja, não vês que ela está em ruinas? “Com muito boa vontade o farei, Senhor”, ele respondeu.
Francisco concluiu que quem mais “pisa na bola” nesse universo é o Crucificado. Ele não sabe o pecado que faremos daqui 5 minutos e já está acionando misericórdia para nos perdoar.
Depois disso, Francisco encontrava a doçura daquela noite em tudo: no sol, na lua, nas estrelas, no vento, na terra…na ofensa, na dor e na morte. Eis o Cântico das Criaturas.
Resumindo: Acho que todos pensaram: que falta de consciência de Nhanhá, discordar de que preto é igual a um branco…!! É que o poeta aprendeu bem com o mestre: limpar é deixar ser. Não querer gerenciar a vida. Mas, assisti-la como a um espetáculo. Se fores capaz disso, verás o bem real que pode fazer. E tudo o que fizer, será amor de verdade. Ajudará, de fato, sementes de mostarda a crescerem.